segunda-feira, 23 de outubro de 2023

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Práticas de tortura, espancamentos, ingestão forçada de detergente, ameaças, estupros e falta de assistência médica e psicológica. Esse é o retrato de parte do sistema prisional de Minas Gerais flagrado e descrito em relatório sigiloso do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), órgão ligado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, ao qual O TEMPO teve acesso com exclusividade. As novas denúncias vêm à tona em meio ao cenário de superlotação das unidades prisionais, que acolhem 20.693 pessoas a mais do que a capacidade no Estado. Problemas que transformaram os presídios em “barris de pólvora” e geram denúncias constantes também no Ministério Público. O cenário reflete ainda dentro das famílias dos apenados, que vivem a pressão psicológica pelo medo constante de perder os entes aprisionados. Esta é a reportagem especial “Grades que torturam: quando as penas superam o previsto na lei”.

A inspeção foi realizada nas unidades Presídio Professor Jacy de Assis e Penitenciária Professor Pimenta da Veiga, ambas em Uberlândia, no Triângulo Mineiro, e na Penitenciária Professor Jason Soares Albergaria, em São Joaquim de Bicas, na Região Metropolitana de BH. O relatório de 46 páginas traz detalhes de denúncias feitas por detentos custodiados pelo Estado e revela  “penas” que vão muito além do determinado pela Justiça e  impostas por meios que violam direitos básicos dos encarcerados. Segundo o documento, os presos são submetidos a graves torturadas, com relatos de espancamento, choques elétricos, queimadura com cigarro e uso de armamentos menos letais, que resultam em membros quebrados, lesões pelo corpo, especialmente na região da cabeça, dos olhos e ouvidos, e até perda de órgãos, como o caso de um detento que perdeu o baço depois de uma sessão de tortura cometida por sete policiais penais. 

A Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN), órgão executivo que controla a aplicação da Lei de Execução Penal e das diretrizes da Política Penitenciária Nacional, disse que acompanha a situação dos presídios de Minas e que, após a visita feita às unidades prisionais encaminhou um relatório, com sugestões e recomendações, ao governo de Minas e também ao Tribunal de Justiça e Varas de Execuções Penais, Ministério Público Estadual e Defensoria Pública Estadual.

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Segundo o Ministério Público de Minas (MPMG), com frequência variável, recebe denúncias de violações de direitos aos indivíduos custodiados no Presídio de Uberlândia I e na Penitenciária de Uberlândia I, unidades prisionais onde estão cumprindo pena aproximadamente duas mil pessoas. Sem citar dados, o órgão disse que todas as denúncias são analisadas e, sempre que apresentam elementos mínimos de individualização dos fatos, são instaurados procedimentos administrativos para melhor apuração e eventual responsabilização dos culpados. Além disso, o MP também faz visitas periódicas às unidades prisionais, encaminhando relatórios trimestrais à Corregedoria-Geral do órgão.

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Mesmo assim, o cenário encontrado pelo governo federal nas unidades visitadas ficou muito aquém do ideal. Conforme o relatório, após as agressões, os encarcerados ainda enfrentam uma batalha para conseguir atendimento médico. Em uma das unidades, os presos chegam a ficar mais de 2 meses na cela da triagem aguardando por atendimento, restritos do banho de sol, aprisionados em um local insalubre, sem ventilação ou luz e com esgoto danificado, o que causa “odor insuportável”. “É horrível, não dão nada, você tem que se virar. Eles dão um único comprimido para ser dividido em uma cela com 21 presas. Estando aqui dentro eu tenho medo pela minha vida”, conta um detento, de forma anônima. 

As violências sexuais também são relatadas no texto. Como o caso de duas detentas que foram estupradas, por diversas vezes, por um policial penal. As vítimas foram encontradas em uma cela na qual eram mantidas há 1 ano e quatro meses, sem acesso a banho de sol e com privação de alimentação. O isolamento foi imposto pelos agentes após elas denunciarem os abusos. A penalização ou até a omissão para quem se queixa das violências seria comum, conforme o documento. 

Uma detenta ouvida pela reportagem, que terá a identidade preservada, denuncia ter sido vítima de agressões dentro de um presídio do Estado e só ter conseguido assistência após relatar o caso em uma audiência de custódia. “Eu contei que estava sendo vítima de agressão por outras detentas e não fizeram nada. Na hora das agressões, uma agente penal não fez nada, ela assistiu de camarote. Depois me tiraram e colocaram em uma cela isolada junto com a presa que tinha me agredido. Fui agredida de novo e a agente disse que não ia fazer nada. Foram três dias de agressão, sem dormir e sem comer, fora a tremedeira que até hoje não passou, tive medo até de sair no sol”, relatou em meio às lágrimas. As agressões teriam sido motivadas por uma suspeita dela ter falado sobre outras detentas. 

A Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) afirma, no entanto, que mantém compromisso e zelo com as condições de custódia e ressocialização dos detentos. A pasta diz que considera "inadmissível qualquer conduta que não reflita os valores da instituição e do Departamento Penitenciário de Minas Gerais".

E complementa: "A pasta não compactua com quaisquer situações que envolvam violência no trato com custodiados, apurando e acompanhando com rigor toda situação denunciada. A pasta, dando direito à defesa e ao contraditório, pune com rigidez qualquer situação atípica que envolva profissionais e detentos. Denúncias podem ser formalizadas na Ouvidoria Geral do Estado”.

Problema crescente: um ‘barril de pólvora’

Para o especialista em segurança pública e professor universitário, Luís Flávio Sapori, o problema é reflexo de uma série de carências na detenções mineiras. Ausências que, segundo ele, fazem do sistema prisional do Estado um barril de pólvora. “É um sistema onde as carências, onde as assistências previstas em lei, como a jurídica, alimentação, judicial, saúde, trabalho e a educação, estão aquém do necessário. À medida que o sistema tem muita ociosidade dos presos, por exemplo, não deve chegar a 25% o contingente que tem alguma atividade laboral, essa ociosidade é perversa. Ela, somada à baixa qualidade das demais assistências e à superlotação, cria um barril de pólvora dentro das unidades prisionais”, avalia. 

Sapori afirma que a situação cria um efeito cascata no sistema penitenciário, que acaba por resultar em intervenções violentas e que infringem os direitos humanos. “As tensões constantes, insatisfações constantes, motins, início de rebeliões acabam levando o setor de contenção da polícia penal a agir, muitas vezes com excesso, é verdade. Esse excesso tem que ser controlado”, afirma. Para o especialista, a solução pode estar em um sistema de apurações mais efetivo e na elaboração de protocolos de atuação. “Para isso é importante a Ouvidoria do sistema penitenciário trabalhar de forma muito forte, importante que as denúncias sejam apuradas e, ao mesmo tempo, aprimorar o treinamento, as técnicas de uso progressivo da força dentro do sistema. Protocolos de atuação, formação técnica dos policiais é fundamental para diminuir o problema”, aponta. 

O diretor de Inclusão da Ordem dos Advogados do Brasil em Minas Gerais (OAB-MG), William Santos, afirma que as torturas e a superlotação são um problema crônico no Estado, alvo de denúncias diárias. “Temos uma comissão de assuntos penitenciários que recebe, apura e encaminha as denúncias. Chega denúncias diariamente, o que é emergência a gente toma providências no momento”, detalha. Segundo ele, há um grupo de policiais penais responsável pela maior parte das violências registradas no sistema. “Vem e muda a gestão e o problema só piora. Primeiro temos a superlotação, que sempre acontece, e a tortura, que muitas das vezes é praticada pelo Grupo de Intervenção Rápidas (GIR). É uma vergonha que exista dentro do sistema prisional mineiro, esse grupo que bate em preso e ameaça familiares. Temos o caso grave do estupro de duas pessoas dentro do presídio. Então são coisas vergonhosas e que são crônicas no Estado”, avalia

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