Apesar de o delivery da droga ter expandido o tráfico para a cidade, as favelas ainda são os locais onde mais ocorrem batidas policiais na “guerra” contra a modalidade criminosa. É o que aponta uma pesquisa realizada no Norte de Minas e que mostra que homens negros, moradores de comunidades, com idade entre 17 e 27 anos, são os principais alvos dos agentes na hora das abordagens. 

Os dados fazem parte da pesquisa “Guerra às drogas na cidade: Práticas de estado na construção de territórios de exclusão” realizada no programa de mestrado da UFMG em parceria com a Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). O levantamento foi feito com base na análise de mais de 450 ocorrências de uso e 1.200 ocorrências de tráfico de drogas registradas no período de um ano.  


Autor da pesquisa, o professor da Universidade Estadual de Montes Claros e promotor de Justiça, Guilherme Roedel, explica que o diagnóstico apontou a ausência de ocorrências em bairros considerados nobres na cidade. “Aproximadamente 80% das ocorrências partiram da iniciativa dos próprios policiais, por meio de batidas nas quais equipes se deslocam para zonas quentes de criminalidade e começam a abordar carros e indivíduos”, afirma. 

Os resultados obtidos no levantamento revelam que a maioria dos abordados não tem ensino médio completo e que mais de 90% das ocorrências por uso ou por tráfico envolvem pessoas do sexo masculino. Em relação à idade, a pesquisa mostra que, no caso do uso, a faixa etária dos autuados varia de 19 a 27 anos e, no caso de tráfico, de 17 a 25 anos.  

O promotor destaca ainda que, na maior parte das abordagens com algemados os indivíduos, eram pardos e pretos. Segundo o pesquisador, os boletins analisados são de delitos concentrados em áreas designadas como “zonas quentes” de criminalidade, que coincidem com favelas e suas imediações. 

É sabido que pessoas ricas também usam, mas a escolha da abordagem geralmente é nas áreas mais pobres, nos locais já conhecidos como áreas de criminalidade. À medida que o estado direciona esses registros repetitivos em favelas e imediações gera registros que vão aumentar o banco de dados, mostrando que aquele local é de crime. Isso gera um ciclo fazendo com que aquela região sempre seja a zona de criminalidade”, afirma.  

Para Roedel, as estratégias de combate às drogas, com batidas em periferias e imediações, reforçam a estigmatização de um perfil de indivíduo e localidade na abordagem. “Esse superpoliciamento das regiões periféricas gera um ciclo de feedback prejudicial e cria a estigmatização de um território em que as pessoas serão taxadas como traficantes, sendo ou não. Isso cria mais preconceito e racismo, enquanto o real consumidor hoje não está nas favelas, e sim nas regiões centrais”, aponta.  

Questionada, a Polícia Militar (PMMG) negou que as ações de combate ao tráfico ocorram apenas nas comunidades. “A Polícia Militar utiliza ferramentas de modo que as ocorrências caem no sistema e todos os militares têm acesso no próprio celular para verificar o espaço territorial do trabalho, para a mensuração das ocorrências e fazer com que o trabalho seja cirurgicamente pontuado em relação ao que está verdadeira acontecendo. Não significa que as ações policiais vão ocorrer nas comunidades mais carentes; elas vão ocorrer de acordo com o mapeamento criminal e geolocalizado em tempo real”, garante o tenente-coronel Flávio Santiago, chefe do centro de jornalismo da PMMG. 

Santiago ressalta, no entanto, que ainda há pontos nas periferias que necessitam de monitoramento constante, mesmo que a grande maioria dos moradores seja de pessoas que não participam do esquema criminoso. “Temos abordagens em todos os locais da cidade sobre tráfico e consumo de drogas. Mas, infelizmente, algumas comunidades têm um percentual ínfimo de pessoas que buscam esses locais para se esconderem para a venda de drogas. Então, os locais conhecidos como ‘boca de fumo’ precisam ter um monitoramento, mas hoje as abordagens vão muito além disso”, pontua.  

Sobre o temor da população por abordagens, o tenente-coronel afirma que a PM tem feito esforços para ouvir a população e tentar dar “voz” às demandas da sociedade. “Hoje temos trabalho focado na proteção das nossas comunidades. Temos o Grupo Especializado de Preservação em Áreas de Risco, o Gepar, para poder resguardar o direito da população e ficar livre da ação dos criminosos. Temos também ações de grupos minoritários com nosso comandante, que está ouvindo diversos segmentos sociais, formando um plano estratégico da instituição para atender as demandas da população”, ressalta. 

Para além do tráfico

Moradora de comunidade, presidente do Projeto Romper e da Casa Acolher para Mulheres Morro das Pedras, na região Oeste de Belo Horizonte, Jutthay Nogueira afirma que um, dentre tantos motivos para as abordagens policiais “diferenciadas” e mais numerosas nas favelas, é o medo de ambas as partes. Conforme ela ressalta, há uma série de mitos relacionados aos moradores, além das questões raciais, o que acabou gerando posicionamentos institucionais baseados nesses equívocos ao longo dos anos. Por outro lado, os habitantes das comunidades, inclusive as crianças, também veem crescer o receio das forças de segurança ao presenciarem cenas em que parentes ou amigos passam por uma abordagem excessiva ou constante. 

“A polícia precisa parar de ter medo, e nós também precisamos – mas, para isso, eles têm de fazer a parte deles. Enquanto houver esse ‘muro invisível’ para alguns, quem vai padecer somos nós. Precisamos ter diálogo com a polícia, que eles se sentem conosco e nos ouçam. Necessitamos também que as crianças os vejam realmente como protetores, como heróis. É preciso desmistificar um lado e reconstruir o outro”, afirma ela. 

Especialista em segurança e com vivências no exterior, Arnaldo Conde também destaca que a natureza das abordagens traz um certo temor em si para ambos os lados. Ele afirma que nem o policial, nem a pessoa que é parada por ele sabe muito bem como aquilo vai terminar e quais serão os tipos de reações.  

“A abordagem policial, geralmente, é o momento que traz mais risco para o profissional. Ele nunca sabe com quem, de fato, está lidando. Em algumas situações, eles precisam tomar uma atitude mais proativa em relação à defesa. A primeira preocupação do policial é manter o controle da situação. Em determinadas ocasiões, ele o perde, por uma série de fatores. Mas não existe nenhuma orientação, dentro dos cursos, para realizar uma abordagem diferenciada em um bairro ou outro”, diz ele. 

Jutthay, no entanto, não acredita que é sempre assim. Para ela, há, sim, um olhar diferenciado para os moradores da favela, deixando-os em um foco negativo. “Na visão de muitos, qualquer pessoa dentro de um aglomerado é suspeita. Se o meu filho estiver bem vestido na Savassi, ele é só um playboyzinho. Se estiver na favela, é suspeito. É necessário retirar o rótulo de que todo favelado é vagabundo. Aqui há muitas pessoas boas, que sonham com um mundo melhor”, diz ela, que lembra que a criminalidade não é algo exclusivo das comunidades. 

Especialista em segurança, Arnaldo Conde concorda. Conforme ele salienta, além dos pontos de tráfico espalhados pela cidade, também há o tráfico interpessoal, quando as pessoas vendem para amigos, parentes ou conhecidos em pequenas quantidades, em qualquer lugar ou região. E esse tipo pode ser até mais perigoso. “Esse é um tipo de atividade que é mais nociva até pela venda ser de ‘pouca coisa’ e ser mais pontual. Com isso, é mais difícil fazer investigações, levantar informações”, afirma ele. 

Consultado pela reportagem, um traficante confirmou que não existe um ponto mais propício para o tráfico e para o consumo de entorpecentes. De acordo com ele, atualmente há o chamado “disque-droga”, que funciona como uma espécie de delivery. O serviço é oferecido para todo o município e ajuda, inclusive, a “dispersar” os clientes dos pontos, com o intuito de chamar menos a atenção dos policiais. “Temos clientes de toda a parte de Belo Horizonte, mas a maioria é da região Centro-Sul”, diz ele. 

Problema antigo

“Com todo respeito aos pesquisadores, para quem mora na favela, isso sempre esteve nítido”. A fala é de Julio Fessô, líder social nascido e criado no Morro do Papagaio, na região Centro-Sul de Belo Horizonte. De acordo com ele, o fato de as abordagens policiais geralmente serem realizadas na favela e de que isso reforça a estigmatização das comunidades já é algo bem conhecido dos moradores. “Mas é importante que isso seja dito por alguém ‘de fora’, para que não pareça que é ‘mi-mi-mi’ de quem vive essa realidade todos os dias”, afirma. Segundo Fessô, para que haja mudanças, é preciso ter um trabalho para que as polícias “deixem de ser racistas e preconceituosas”. 

“As ‘quebradas’ são lugares de paz, onde existe, sim, um ambiente familiar e acolhedor. Problemas temos nas favelas, nos bairros, nas cidades, nos países e no mundo. Então, é importante que as pessoas entendam e parem de criminalizar as comunidades e as pessoas que moram nelas. Somos nós das periferias que acordamos cedo para fazer o país andar, ralando pesado, e também fazendo o PIB girar, gastando todo nosso dinheiro aqui, sem levar para fora do país. É o padeiro, o motorista de ônibus, a faxineira, a babá, a diarista, o coletor de lixo, a recepcionista e, por fim, os demais trabalhadores braçais”, afirma ele. 

Presidente da Central Única de Favelas em Minas Gerais (Cufa-MG), Francis Henrique também destaca a potência das comunidades. Ele afirma que cerca de 97% a 98% dos moradores são pessoas envolvidas em atividades produtivas, que cuidam de suas famílias, com capacidade de superação e capazes de entregar boas soluções para o mundo. “Essas pessoas têm uma capacidade de reconstrução muito grande. Em relação a criminosos, eles estão presentes em todos os setores da sociedade”, diz. 

Francis ressalta que o preconceito que muitos agentes da segurança pública podem ter contra os moradores das favelas é apenas uma pequena parte de um cenário muito maior. 

“Existem diversos obstáculos que impedem que esses moradores economicamente pobres tenham acesso a outros espaços. Isso vai gerando um círculo que faz com que a sociedade tenha esse tipo de comportamento (de exclusão e preconceito). Quando a pessoa procura emprego, diz onde mora, e a vaga é negada, ela está sendo marginalizada. É todo um sistema que vai interferir na formação desse estereótipo”, conclui