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Policiais se alastram por segurança privada em SP e fazem até investigações paralelas, diz estudo
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Agência O Globo
Postado há 3 horas e 7 minutos
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Policiais se alastram por segurança privada em SP e fazem até investigações paralelas, diz estudo
Gerente de segurança de um condomínio de luxo com quase 1.500 casas no interior de São Paulo, Júlio (nome fictício) criou o que ele chama de “sala sensível”. No local, um banco de inteligência é abastecido com dados confidenciais de moradores, prestadores de serviços e vigilantes, todos obtidos de forma sigilosa por policiais militares à paisana que integram a sua equipe. Ele admite que não pode, assim como seus funcionários, investigar a vida pessoal de ninguém. “Mas a polícia pode”, afirma ele. Ao contrário dos seguranças, que sabiam estar sendo monitorados, os moradores não tinham ideia de que eles próprios poderiam ter a vida vasculhada e suas fichas criminais entregues nas mãos dos agentes de inteligência.
Essa é uma das histórias reveladas em uma pesquisa de um grupo de antropólogas que estudou por oito anos a relação entre setores público e privado na área de segurança em São Paulo. O material mostra que, apesar de proibida pela lei, a presença de policiais no domínio particular está disseminada: eles vão de donos de empresas de vigilância a guardas na base dessa hierarquia informal.
O trabalho, liderado pela antropóloga Susana Durão, da Unicamp, aponta que a segurança no estado vive hoje uma situação de “ambiguidade sistêmica”, com conflitos de interesse. O mais notório é a coleta secreta de dados privados, compartilhados com policiais.
— Nossa intenção não era denunciar, mas entender este fenômeno da segurança privada associada à segurança pública, desconhecido por dentro. Encontramos essa mistura ampla de possibilidades de transações econômicas que transcendem largamente os quadros legais, e com repercussões na vida dos cidadãos — afirma Susana.
Às pesquisadoras, Júlio contou que os registros das atividades na portaria e as imagens das câmeras de segurança eram rastreados por sua equipe, que usava o banco de dados da polícia e outras “redes de conhecimento” para identificar pessoas com antecedentes criminais. As informações eram usadas em casos de roubo, agressão e sequestro. “A maioria dos incidentes é perpetrada por alguém com acesso ao interior do condomínio e não por suspeitos de fora”, justificou Júlio em relação à prática. “Como é um condomínio de alto padrão, alguns moradores são criminosos de colarinho branco, estelionatários e sonegadores de impostos, muitos investigados pela Polícia Federal”, acrescentou ele, conhecido entre secretários de governo e vereadores, conexões que lhe dão acesso a uma lista de mão de obra de policiais militares.
— Esse tipo de serviço é mais frequente em condomínios horizontais de alto padrão, de grandes mansões, onde se espera que haja traficantes e pessoas com negócios ilícitos. Os policiais (os de dentro do serviço e os de fora) trocam informações, e a gente não sabe quem se aproveita de quem — diz Susana.
Ao mergulhar em dezenas de casos, as antropólogas expuseram uma ampla zona cinzenta de ilegalidades. O estudo saiu em junho na revista especializada “Policing and Society” com o título “In the shadows of protection: Brazilian police in private security” (“Nas sombras da proteção: a polícia brasileira na segurança privada”). O artigo tem como coautoras as antropólogas Erika Larkins, da Universidade Estadual de San Diego (EUA), e de Paola Argentin, também da Unicamp.
Sem controle
Seguindo a tendência mundial, o Brasil tem mais vigilantes trabalhando na segurança privada do que policiais. No primeiro trimestre de 2022, segundo o último Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o país tinha 1.096.398 vigilantes, diante de 772.2022 agentes de segurança. Mais da metade da força de trabalho da segurança privada no Brasil atua à margem da regulação e do controle, a cargo da Polícia Federal, de acordo com o levantamento. Estima-se que, neste mesmo período, aproximadamente 55% dos profissionais da segurança privada, cerca de 600 mil pessoas, estavam fora dos parâmetros legais estabelecidos pela lei federal 7.102, de 1983, que estabelece normas para o setor.